Palavras e conceitos em psicologia
Retiro uma citação do texto intitulado Psicologia do Trabalho e das Organizações: Produção Científica e Desafios Metodológicos1 que parece muito interessante:
Considerando controvérsia recente envolvendo uma sociedade científica e uma entidade corporativa profissional, os autores do presente texto fazem questão de utilizar, de forma propositalmente alternada, as expressões “psicologia organizacional e do trabalho” e “psicologia do trabalho e das organizações”, para deixar claro que não expressam preferências ou privilegiam a primeira ou a segunda, já que entendem que não existem organizações sem trabalho e que trabalho sempre ocorre em algum contexto no qual existe uma organização, mesmo quando esta não tem uma arquitetura ou estrutura visíveis. Portanto, são necessariamente interdependentes. (p. 84)
Esse é um daqueles casos nos quais parece haver, em psicologia, certa confusão entre o que são conceitos e palavras. O fato é que, independente do que possa ter ocorrido na “controvérsia recente envolvendo uma sociedade científica”, a controvérsia inteira parece dirigida ao uso de um termo: devemos chamar aquilo de Psicologia organizacional e do trabalho, ou Psicologia do trabalho e das organizações? Para acalmar os ânimos, os autores preferiram utilizar as duas expressões alternadamente.
Parece bem claro que tudo se passa como se devêssemos utilizar as palavras adequadamente, por exemplo quando chamamos a xícara de xícara e não de pincel. Ora, na vida prática, na descrição de fenômenos, devemos chamá-los daquilo a que convencionalmente se referem, caso queiramos nos comunicar. E visto que em ciência os resultados compartilhados intersubjetivamente são essenciais, a importância de usar adequadamente as palavras seria óbvia.
Mas há algo mais em questão na citação acima. É o fato de que as expressões utilizadas – “psicologia organizacional e do trabalho” ou “psicologia do trabalho e organizacional” – estão sendo utilizadas como palavras e não como conceitos. Mas os conceitos científicos, para não gerarem confusão, precisam ser bem definidos para serem bem comunicados.
Ora, se chamo certa unidade física de Ohm e outra de Ampère, isso se deve não apenas ao fato de nominarem autores, mas sim de serem conceitos, definidos previamente de forma minimamente rigorosa. Se utilizo física e não fisiologia atualmente para descrever a teoria que abarca as Leis de Newton e não a teoria que descreve o funcionamento do corpo vivo, é porque não estou empregando simples palavras, pois também sei que ambos os termos são conceitos e se referem a certos campos de estudo cujas definições são bem delineadas (ambos esses conceitos, inclusive, já tiveram seus tempos de ambiguidade).
Mas em psicologia há, como dizia Michel Foucault, essas disputas picrocholinas. A ponto de ser possível imaginar as pessoas discutindo exatamente o que os autores do texto tentaram amenizar: uns, dizendo que o termo deveria ser “psicologia do trabalho e organizacional” porque o termo “trabalho” seria privilegiado, ou qualquer outra coisa que o valha; outros, dizendo que deve ser “psicologia organizacional e do trabalho” porque, afinal, qualquer trabalho exigiria algum tipo de organização. Ou, quem sabe, qualquer outra idéia estivesse presente, mas não retira o fato de que não houve qualquer conceituação anterior e cada interlocutor defende seu ponto de vista como se estivesse praticando algum tipo obscuro de esgrima.
E no fim das contas, seria de se perguntar que esgrima é essa, e em quais critérios se apóia. Pois poderia-se chamar as mesmas expressões esgrimadas acima de “psicologia da xícara” ou “psicologia do pincel”, ambas a contento e descrevendo muito bem o “campo”, desde que uma definição prévia e satisfatória se oferecesse junto com a oferta da palavra (então tornada conceito).
- GONDIM, Sonia Maria Guedes; BORGES-ANDRADE, Jairo Eduardo; BASTOS, Antonio Virgílio Bittencourt. Psicologia do Trabalho e das Organizações: Produção Científica e Desafios Metodológicos. Psicologia em Pesquisa, v. 4, n. 2, p. 84–99, 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1982-12472010000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt> [↩]
OpenEdition sugere que esta publicação seja citada da seguinte forma:
Marcio L. M. (17 de Junho de 2024). Palavras e conceitos em psicologia. áskēsis. Recuperado em 15 de Junho de 2025 de https://doi.org/10.58079/11u4x